Uspallata e os Doguinhos de Montanha

Quando passei um tempo em Mendoza, aproveitei para fazer um bate-e-volta para uma cidade que me parecia muito interessante: Uspallata, já nas montanhas.

Na verdade, eu descobri Uspallata no Google Maps, por acaso. Estava olhando o mapa e o nome “Cerro Siete Colores” me chamou a atenção, por ser quase igual o do Cerro de Los Siete Colores, talvez a atração mais conhecida da província de Jujuy, para onde eu iria antes.

Aí gostei das fotos e dos relatos e vi que daria pra chegar a pé, pois fica a 10km da cidade. Sim, eu realmente gosto de caminhar! E isso bastou pra eu ir visitar a cidadezinha.

Missão café da manhã

Cheguei bem cedo à rodoviária de Mendoza, algo como 5h da manhã, e o busão chegou umas 8h em Uspallata. É preciso dizer que esse horário, naquela região argentina, corresponde ao final da madrugada, pois o sol só nasceria às 8h30.

Então quando eu cheguei estava ainda escuro, e caminhando pelas ruas eu vi os primeiros raios de sol batendo no topo nevado das montanhas. Eu não sou um cara de ver o sol nascendo tantas vezes assim, mas não tenho dúvidas de que foi um espetáculo matinal único em minha vida!

Amanhece tarde em Uspallata – mas no topo das montanhas o sol chega mais cedo.

Ainda sem usar os bastões de caminhada, que me possibilitariam caminhar mais de 20km aquele dia, percorri as ruas do centro, sempre olhando pras montanhas ensolaradas enquanto a cidade permanecia no breu. Procurava algo pra comer, mas a cidade inteira estava fechada. Não é nada anormal na Argentina, especialmente na região, que as coisas “comecem a começar” lá pelas 10 da manhã. Mas não esperava que não teria nenhum café ou qualquer coisa do tipo aberto. Trata-se de uma cidade bem pequena, mas turística.

Fui seguindo a rua principal e, sem perceber, já tinha saído da região central da cidade e não havia mais comércio. É tudo bem pequeno mesmo.

Tive que voltar um pouco, mas já sabia que não teria nada. Única coisa que eu vi foram hotéis. Então escolhi um e entrei, e perguntei se podia tomar café da manhã ali, pagando uma taxa. Podia.

O café era simples, mas os hóspedes e, principalmente, o atendente, eram muito simpáticos. O cara do hotel começou a falar em portunhol comigo, parecia acostumado com brasileiros e mostrou muitas coisas do Brasil na portaria. 

Quando montei meus bastões de caminhada, ele me perguntou onde eu iria. Contei, e ele “me avisou” que era longe. A cara dele era de quem não parecia acreditar que eu realmente tinha noção do quanto pretendia andar. Mas, levando-se em conta o meu “formato alternativo de corpo”, é compreensível.

A gangue dos Perros

De pança cheia, comecei a caminhada. Mais uma ou duas quadras depois do Hotel e eu já estava na estrada de terra, que por fim sairia na outra estrada de terra que me levaria até o Cerro. Havia um mirante e eu estava louco para subir e continuar apreciando o começo da manhã, mas decidi deixar pra volta, pois poderia estar morto e não ter condições. Obs.: eu até tive condições, mas não me liguei que o melhor horário para ir ao mirante seria de manhã mesmo, pois à tarde o sol contra dificultaria a contemplação e as fotos.

Então segui caminho e logo depois avistei um grupo com 5 doguinhos felizes brincando mais acima, já no terreno montanhoso. Fiquei muito feliz de ver os cães naquela animação.

Mas então eles desceram para a estrada e começaram a correr na minha direção. Quase me preocupei, mas continuei andando como se fosse a coisa mais natural aquela gangue vindo na minha direção. Eles pararam mais ao longe, olhares desconfiados, às vezes parecendo que pensavam em atacar. Mas no resto do tempo só andavam na minha frente brincando entre eles.

A gangue da montanha

E eu continuei andando como se fossem velhos conhecidos meus. Aí aquele que parecia ser o líder veio chegando, chegando, chegando, e quando estava realmente perto eu “falei” com ele. Aliás, não sei por que usei as aspas, eu realmente falei! Eu falo com cachorros nas cidades, até parece que ali no meio do nada iria ficar tímido com eles.

Bom, essa conversa bastou pra ele decidir que eu era o novo chefe da matilha. E basicamente o bando ia aonde o chefe fosse, apesar de que geralmente andavam na minha frente, parando pra esperar o “líder lento”. O doguinho que eu achava que era o líder tomou as funções de meu assessor ou braço direito, andando quase tão grudado em mim que eu tinha medo de espetá-lo com os bastões de caminhada.

Os quilômetros foram passando bem lentamente, porque eu não conseguia parar de tirar fotos! Que caminhada era aquela? Eu sabia que seria um lugar bonito, mas realmente não tinha noção de que seria tanto. É um caminho bem vazio, e pros moradores locais não é nada mais do que uma estrada de terra normal. Mas para mim, aquele caminho cercado de montanhas ainda era muito impressionante!

Ao mesmo tempo, eu ficava impressionado que os doggos continuavam me seguindo. Ofegavam, mas só paravam quando eu parava, especialmente o meu “braço direito”. Os outros ficavam a distância, me “seguindo na frente”.

Eles eram um total de cinco cães: quatro pretos e um caramelo. Mas num dado momento cruzamos com outro grupo: Dois peões tocando uma boiada, e mais 4 cachorros!  Cumprimentei os homens (e, disfarçadamente, cumprimentei os cachorros também) e segui. Os cachorros ficaram um tempo latindo de leve, um grupo pro outro, enquanto eu me afastava para um lado e os peões pro outro. Quando o ritual estava pronto, os “meus” cães voltaram para mim e os do outro grupo seguiram em sentido contrário, com os peões.

No entanto, um dos cachorros do meu grupo debandou pro outro lado. Não vou negar: me senti traído! haha!

Cerro Siete Colores

Quando meu relógio registrou 10km, cheguei ao Cerro Siete Colores, e a paisagem ficou ainda mais bonita! Mas eu continuava impressionado que os cachorros seguiam comigo! Tinham feito pelo menos 9km!

Há uma pessoa de vermelho na foto. Se encontrá-la, vai entender a escala da foto

No local, uma família explorava as rochas. Encontrei-os numa parte alta, depois de eles já terem sido recepcionados pelos “meus cães”. Que, aliás, eles juravam que eram mesmo meus, pois eles (os doggos) estavam sempre me seguindo (a família tinha passado por mim na estrada alguns quilômetros antes, de carro).

Quando eles se foram, eu e minha escolta canina ficamos com o local todo só pra nós! E esse pode ter sido o lugar que eu mais gostei de visitar em toda a Argentina até agora, porque ali só tem uma placa na entrada e mais nada. Não tem taxas nem limitações, você pode andar o quanto quiser por onde quiser. Não deve ser um lugar tão visitado ainda, já que não havia pichação nem nada, que é geralmente o motivo de fecharem os lugares para visitação livre.

Lá de cima, vi outra trilha em frente, e não resisti. Mesmo já tendo caminhado 10km e tendo que caminhar mais 10 na volta, fiz esse pequeno desvio. E valeu a pena. Consegui tirar uma foto enquanto três dos meus cães estavam olhando a paisagem de um ponto alto. É a foto que mais me traz alegria em olhar hoje, meses depois. Só um não apareceu nessa foto porque ele não ficava um metro afastado de mim.

Amo esta foto

A volta, o coração partido e a parrilla

A trilha em que eu estava era muito mais longa do que parecia vista do outro lado da estrada, e eu queria segui-la mais e mais. Não estava cansado. Mas aquele dia eu estava com uma rara consciência: em breve eu iria sim estar cansado!

Então comecei a voltar. Só aí, na hora de descer, vi o tanto que a trilha era íngreme. Subir é mais pesado, mas é sempre mais fácil nesses casos. Não sei como não ferrei meu joelho bichado na descida. Não seria uma boa me machucar ali, longe de todo mundo. A solução para ficar inteiro foi utilizar a técnica avançada de trekking que consiste em botar a bunda no chão e deslizar.

Na volta, os doguinhos continuaram me seguindo, todos os 4. O percurso foi mais rápido do que a ida porque parei menos pra tirar fotos, mas ainda assim eu parava muito, porque a vista pelo outro lado também era incrível. Além disso o sol estava batendo diferente de antes (claro!), mudando as cores de tudo.

Um pouco depois do ponto onde eu tinha encontrado a minha matilha, o meu assessor canino se afastou de mim e chegou mais perto dos seus amigos, que estavam mais a frente. Aí, do nada, saíram da estrada e, de longe, eu os vi entrarem numa casa onde pediram e receberam comida. Não sei se moravam lá. Só sei que eles foram embora sem se despedir de mim! Depois de tudo que passamos!

De coração partido, cheguei à cidade. Até tinha energia para subir ao mirante, mas não fiz isso. Até por causa da posição do sol. Era tipo umas 14h ou um pouco depois, mas, incrivelmente, não achei NENHUM restaurante aberto mais. Na Argentina geralmente vejo os restaurantes funcionando o dia inteiro, e 15 horas parece um horário bem padrão de almoçar por lá.

Rapidamente cheguei praticamente na saída da cidade sem encontrar restaurante aberto

Quando finalmente encontrei um restaurante aberto, estava lotado, e decidi seguir um pouco mais. Tinha visto no Google maps um bar que se chamava “Al Carajo Bar and Food”, já meio fora da cidade, e obviamente eu queria tirar uma foto lá. Mas acho que fui trollado pelo Maps, ou simplesmente não vi o lugar.  Tive que voltar pra cidade, onde achei um restaurante de Parilla aberto que não estava lotado, e foi lá mesmo que descansei pra esperar a volta pra Mendoza, enquanto matava uma parrilla individual (que ainda assim é muita coisa).

A volta pra Mendoza foi ainda de dia, onde pude ver o percurso de descida da montanha que eu não tinha visto na subida. Já estava louco pra passar ali de novo, e realmente faria isso, numa excursão às montanhas. O sonho agora é pedalar por essa região toda um dia…